Conhecimento

Da impotência e da culpa

Crescemos com o enorme peso da expetativa que todos criam sobre nós e que se consubstancia na certeza absoluta de que, independentemente dos contextos e das condições, saberemos sempre distinguir o certo do errado, o bem do mal, optando sempre pelo lado solar em cada bifurcação que a vida nos apresenta. Ninguém nos protege. Não é preciso.

A nossa infância pode ter sido passada num ambiente familiar de campo de batalha, de cortar à faca que, e especialmente se formos meninas e mulheres, todos tomarão por garantido que percebemos que as discussões e os insultos não são o caminho, que mentir é feio e que as palavras não voltam, pelo que as devemos pensar antes de as vomitarmos para o ar. Podemos crescer num ambiente dominado pelo vício, seja de que tipologia for, que ninguém se preocupará em disfarçar ou esconder-nos a triste realidade, sendo certo que rapidamente perceberemos que o álcool, a droga ou o jogo são caminhos pantanosos que devemos evitar.

Ninguém precisou de insistir para que estudássemos, para que construíssemos uma carreira de êxito e que nos trouxesse felicidade, para que perseguíssemos um estilo de vida saudável, para que fôssemos zelosas nos nossos comportamentos sociais e muito menos foi preciso dar o exemplo. Muito menos foi preciso que nos explicassem que a maior valia de todas é sermos bons ser humanos, feitos de valores e capazes de ser coração mesmo quando não há motivo. 

E como o ponto de partida foi sempre o de que conseguiríamos ser filhas, esposas, mães, netas, avós, donas de casa e, claro, capazes de equilibrar tudo isto com a estabilidade do trabalho que quase todos desejam, revelando-nos fortes, até invencíveis perante cada novo desafio ou tormenta, ninguém está preparado, sequer a contar que, em alguma destas dimensões, tenhamos a fatalidade de falhar, de não sermos perfeitas, de errar nas escolhas, de perecer.

E como ninguém está a contar, também nós metemos na cabeça que a capa e a máscara da invencibilidade nos foram destinadas à nascença e que, se alguma coisa correr mal, a culpa só pode ser nossa. Se adoecermos, se não tivermos talento para algo que se esperava que tivéssemos, se não encontrarmos o emprego dos sonhos de toda a gente (mesmo que não seja o dos nossos sonhos), se não tivermos êxito no casamento, sorte ao amor, se não formos mães extremosas, ou sequer mães, se não criarmos uma doce e terna empatia com todos os que nos rodeiam, se perdermos o tom e a calma, se nos apaixonarmos quando já era suposto estarmos resignadas, se formos assaltadas, roubadas, violadas, a culpa é sempre nossa.

“Estamos sempre de espada em riste e, ainda que ninguém nos veja e que no geral não se sinta a imensa maioria que somos na frente de batalha, não temos direito a descanso, a pausa, a recolhimento. Temos que curar a dor no caos dos dias, que levar a vida mesmo que seja em pranto, que resolver mesmo que só nos apeteça desaparecer ou, pelo menos, permanecer escondidas no sofá, nas mantas e nos filmes.”

Aconteça o que acontecer, corra a vida como correr, somos donas e senhoras da nossa história e se saímos da regra, da norma, se não aguentamos, se nos quedamos na dor, é culpa nossa porque haveria, seguramente, algo que poderíamos ter feito diferente, que poderíamos ter evitado. Nunca somos, nunca seremos vítimas mas apenas e só responsáveis. 

Mas lá vamos andando, carregando as culpas do tudo e do nada, fazendo do nosso corpo fortaleza e tomando por consciência que desistir não é conversa e que é a nós que nos cabe resolver o que houver para resolver. E com a culpa que carregamos, consequente da tal expetativa e certeza que não falharíamos, vamos aprendendo a ir à frente, a decidir tudo, a prever, a planear, a projetar, a organizar, a controlar. Nada nos pode sair da rota pois o tempo é património masculino e o que nos sobra é sempre pouco para tudo o que nele tem que caber.

A sociedade priva-nos do poder efetivo mas obriga-nos ao poder afetivo, à crença e à luta. Estamos sempre de espada em riste e, ainda que ninguém nos veja e que no geral não se sinta a imensa maioria que somos na frente de batalha, não temos direito a descanso, a pausa, a recolhimento. Temos que curar a dor no caos dos dias, que levar a vida mesmo que seja em pranto, que resolver mesmo que só nos apeteça desaparecer ou, pelo menos, permanecer escondidas no sofá, nas mantas e nos filmes. Não temos direito a não conseguir, a não ser capazes, a não decidir. Não. Temos que decidir e seguir, assumir as consequências e continuar, recomeçar sem cessar, ressuscitar sem morrer.

Nascemos meninas e somos mulheres, não há tempo a perder e a vida não nos perdoa, não nos tolera e não nos dá a hipótese de nada fazer, de não acontecer. E a verdade é que, bem vistas as coisas, falhando aqui e ali, escrevemos a nossa própria história, fizemo-nos gente, construímos uma carreira, pagamos todas as contas e mais algumas, tomamos as decisões difíceis e as fáceis, aprendemos a viver com as falhas, com o desamor e com a perda e assumimos a responsabilidade de cuidar de tudo e de todos e ainda de nós. Fomos controlando o que vinha e fomos podendo ser as mulheres que quisemos ser, talvez superando as tais expetativas, deixando pegada, sendo marca, sem a perfeição dos tontos, mas com a imperfeição dos sábios. 

Até que há o dia em que, depois de termos puxado a carroça desde que nos sabemos gente, sem proteção humana ou divina, de nos termos excedido, a vida nos pede que treinemos a impotência e a calma, que deixemos acontecer, que não tenhamos pressa, não tentemos saber como ou porquê, porque não se pode controlar tudo e porque o universo trará as respostas, dirá as verdades e fará com que tudo tenha, assim que o chegar o tempo certo, sentido. Sentimos culpa, outra vez, e não percebemos porquê ou de quê. Apenas a culpa de sempre, a culpa consequente da responsabilidade pela vida que quisemos ter. Rumamos à transformação, vergamo-nos às evidências e olhamos para dentro.

Fazemos terapia, vamos ao psiquiatra, aprendemos meditação e reforçamos o ginásio, mudamos a dieta e lemos mais livros, vemos os amigos e trabalhamos mais, ainda mais. Testamos a calma que nos pedem na correia que conhecemos. Não há respostas e o silêncio mata. Não há palavras e a espera dilacera-nos a alma. Era o desafio que faltava ou então não: é só mais um. Queremos ter fé mas não sabemos porquê. Queremos dar e não há ninguém disposto a receber. Trabalhar a impotência, não controlar, esperar pelo dia certo e pela hora oportuna. Respeitar a liberdade do outro porque a nossa não interessa, nunca interessou. Se não o fizermos, não é amor, mas obsessão. Ser livre, determinado nessa liberdade e ousar decidir é impormo-nos ao outro, dizem-nos. Porque cada um tem um tempo e o nosso, mulheres, é sempre o segundo mais importante, nunca o primeiro. E ainda que possamos permanecer divorciadas para sempre, connosco a culpa nunca morre solteira. 

 

Helena Mendes Pereira
Curadora de arte e escritora

 

 

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