Sem Treta

Cati Freitas: mulher, mãe, cantora e compositora

[Fotografias: Joana Meneses]

 

Cati Freitas tem o sorriso de quem está em paz e uma serenidade muito própria, capaz de contagiar quem está à volta. A compositora e cantora de Braga fala-nos sobre as suas raízes, o seu percurso e sobre o estado da Arte em Portugal. Mãe há poucos meses, explica-nos ainda como concilia a maternidade com a carreira.

 

“Eu não desejo muita coisa, só a necessidade de expressão me provoca uma coceira crónica no espírito e me conduz aos seus efeitos. É preciso encontrar o molde da expressão, cozinhá-lo no sábio forno do tempo, só isso me inquieta.” Esta é a frase com que te apresentas no teu site. Podes explicá-la? A forma como me expresso enquanto ser humano e artista está intimamente relacionada com o meu processo de perceção interior das coisas, de mim mesma e do todo à minha volta. Encontrar os veículos para expressar essas perceções, que são tão subjetivas, é uma das minhas grandes inquietações. Por se tornar em primeiro lugar uma necessidade e por não querer transformá-las em algo que possa não as representar da forma mais aproximada em determinado momento da minha vida. Materializar uma emoção numa música ou numa obra, sem lhe ser desleal, é um desafio tremendo. E porque descobrir as cores de que sou feita é por si só um trabalho sem fim.

Como é que descobriste o talento para cantar? Em pequenina já davas espetáculos? Sim, em pequena já dava o ar da minha graça. A festas de família eram sempre palcos. Alguns teatros da escola também. Mas aí eu não tinha a consciência real. Eu sentia, sim, algo muito forte que me assustava e que, ao mesmo tempo, me libertava. Mais tarde e com o desenrolar das experiências que tive nos palcos que a vida me foi colocando como “testes”, aí sim, pude sentir a vocação.

Também escreves muito. Também é um talento natural? Sim, o talento é natural, lapidado com trabalho (sorriso). Todos acabamos por ter inclinações que se manifestam. Nem todas as músicas que canto são escritas ou compostas por mim, mas este segundo álbum é praticamente autoral sim. Gosto de interagir com outros compositores, mas a cada passo componho e escrevo mais.

O que é que te inspira? Inspira-me a emoção mais simples escancarada no olhar de alguém, ou a simples folha que cai no outono. Inspiram-me as pessoas que amo, os lugares que guardo. Normalmente canto e escrevo muito sobre mim mesma e sobre o que sinto em determinadas fases da minha vida.

Porque escolheste São Paulo como cidade para gravares o teu primeiro disco, “Dentro”? Queria muito trabalhar com aquele que veio a ser meu produtor nesse disco: Tiago Costa, pianista e arranjador. Ele é de lá e achamos, dada a equipa que escolhemos para nos acompanhar no processo, que seria mais viável gravar lá do que aqui.

O teu álbum mais recente chama-se “Estrangeira”. Porquê o nome? É um nome irónico, por variadas razões, algumas delas são estas: o meu nome é mesmo Cati e não Caty ou Katty. Nasci em Portugal e a minha família também. Disseram-me muitas vezes que o público português não ia entender a música que faço. Que se fosse fadista teria mais sorte. E porque senti de uma maneira mais subjetiva (inúmeras vezes no meu caminho até aqui) que falava uma língua que muitos pareciam não conseguir entender.

Só que aí prevaleceu a atenção na vida que gerava dentro de mim e que desejava com todas as minhas forças. Cancelar os concertos, ver todo um esforço e dedicação enormes irem (pensei naquele primeiro instante) por terra, foi duro. Muito duro. Chorei…com uma das mãos no meu ventre e outra no telefone enquanto decidíamos o encerramento da tour desse ano.

“Falo com Deus” é uma das músicas favoritas da revista Minha. Falas muito com Deus? Obrigada (sorriso) fico feliz por saber. Sim, Falo. Tento conectar-me interiormente comigo mesma, ouvir o que está para além da superfície da minha mente. Essa é a minha maneira de encontrar Deus. Tentar ir mais fundo…à alma e lá eu encontro paz. Tudo o que necessito saber.

És de Braga. Enquanto cantora sentes-te acarinhada pela tua cidade? Sinto. Mas também sinto que Lisboa parece conhecer-me mais do que a minha própria cidade. Além do Theatro Circo, onde procuro sempre estrear sempre os meus discos,  tenho o grande sonho de fazer parte da Noite Branca. Penso que os autarcas da nossa cidade não sabem muito de mim por aqui. (sorriso)

O talento nacional, seja na música ou em outras áreas, é valorizado em Portugal? É. Mas até se sentir esse reconhecimento é preciso travar muitas batalhas. Gostava que fosse mais imediato e que houvesse mais espaço para todos. Não só os circuitos privilegiados dos amigos dos amigos, ou de quem por ventura conseguiu uma porta mais aberta por algum motivo que não o seu valor artístico. Mas assim também é a vida. Todos com o seu caminho. No entanto, vejo isso também como uma necessidade muito grande de educação cultural por parte da nossa sociedade. Tudo começa em casa.

Estavas a iniciar uma digressão quando soubeste que tinhas uma gravidez de risco. Como reagiste? Foi uma mistura explosiva de sentimentos. Só que aí prevaleceu a atenção na vida que gerava dentro de mim e que desejava com todas as minhas forças. Cancelar os concertos, ver todo um esforço e dedicação enormes irem (pensei naquele primeiro instante) por terra, foi duro. Muito duro. Chorei…com uma das mãos no meu ventre e outra no telefone enquanto decidíamos o encerramento da tour desse ano. Após os dois primeiros dias, entrei num processo de aceitação enorme e de pura concentração na minha filha e na minha recuperação. Aos poucos fui sendo envolvida por uma energia que não sabia de onde vinha mas que me serenava e fortalecia. Aproveitei para repensar na forma de trazer este “Estrangeira” e de regressar aos palcos assim que tudo se normalizasse.

Deixaste, nessa altura, a tua vida em suspenso. Estamos a falar de uma realidade semelhante à de muitos portugueses por esta altura. Alguns conselhos para viverem melhor esta época de isolamento? Em primeiro lugar, aceitação. Segundo, seriedade e responsabilidade face às ações pedidas pelo SNS. Depois, reflexão interior ativa em relação às suas vidas, escolhas, emoções e sentimentos. Por último, esperança.

Achas que a arte em Portugal vai sobreviver a esta pandemia? A Arte sobrevive sempre, a tudo. Mas nós artistas vivemos um momento de aflição. Estamos parados. Lidamos com massas, aglomerações. Não consigo intuir nada do que aí vem, muito honestamente. Talvez tenhamos que arranjar formas de reinventar a forma de levar o nosso trabalho ao público de forma justa e sustentável, agora como ainda não sei.

Consideras que esta crise que enfrentamos também vai servir para percebermos o quanto precisamos de arte e cultura nas nossas vidas? Eu espero, honestamente que sim. Nestes momentos são os livros que nos salvam, a música, o cinema e outras expressões . É preciso refletir sobre isto.

Qual vai ser a primeira coisa que vais fazer quando pudermos sair de casa livremente? Agradecer, abraçar os meus pais e mostrar o mar à minha filha.

Sou por norma, no oceano profundo da minha alma, uma pessoa com alguma resiliência e serenidade para encarar a vida. No entanto, exercito muito a minha mente para que cada vez ela seja mais liberta dos pensamentos que não me levam a lugar algum.

Como é a “Cati-mãe”? Descontraída, mãe galinha… As duas. Mas sou mais galinha. Sou acima de tudo uma mãe “humana” (sorriso) que procura dentro do que pode e sabe, ser o mais carinhosa e educadora possível.

É fácil conciliar a carreira com a maternidade? Achas que os homens têm a vida mais facilitada nesse aspecto, ou as dificuldades para as mães advêm sobretudo de preconceitos que ainda é necessário combater? Não. Não é fácil conciliar carreira e vida de mãe, principalmente nestes primeiros meses. Gravei o video-clip do single que marcava o meu regresso aos palcos após mês e meio de ter tido a Clara, uma semana após sair da maternidade estava com a Clara no meu peito direito enquanto atendia telefonemas  e respondia a emails. Para alguns isso foi uma atitude um pouco “estranha” e havia quem me perguntasse: “com quem é que a tua filha fica?”. O que achava curioso é que ninguém perguntava ao meu marido a mesma coisa quando ele fazia o mesmo. Só posso falar da minha experiência: sinto que fisiologicamente é mais exigente para a mãe. A dependência dos filhos, repito, nesta primeira etapa de vida, é muito grande. Até já na fase da gestação, diria. Passamos por transformações enormes que, por muito que queiramos, só são entendidas por quem as passa: nós, mulheres, ainda que por vezes sejamos nós a sermos as machistas umas para com as outras. A maioria desses comentários vinham de mulheres e não de homens. Nesta questão fisiológica da maternidade mesmo que os homens queiram participar de igual forma, nunca conseguem sentir o cansaço fisico ou a conexão que a mulher tem em relação à sua cria. Faz parte, é o que é e não queria mudar de sexo por isso. Agora, outra coisa é o tipo de facilitismo que tem que ver com os padrões de atitudes do homem associados não só à maternidade, mas também às mulheres pelo ponto de vista dos direitos humanos de um e do outro. Aí sim, os homens acabam por ter ainda a vida mais facilitada, quer seja nesta fase, ou na vida em geral. Já sinto melhorias na sociedade de hoje, que somos cada um de nós. Ainda assim, sinto muitas vezes um machismo subtil, não tão escancarado, mas presente nas coisas mais simples do dia a dia até. No entanto, para terminar a resposta, sinto ser também necessário ressalvar que, se sou e estou onde estou agora, devo muito ao homem que tenho ao meu lado. Nem todos os homens são machistas. Tudo é questão de elevação de consciência. Leva o seu tempo. Daí serem necessários os extremos muitas vezes até que consigamos ter um equilíbrio justo.

És uma pessoa muito positiva. É algo natural em ti ou tens que cultivar esse espírito todos os dias? Sou por norma, no oceano profundo da minha alma, uma pessoa com alguma resiliência e serenidade para encarar a vida. No entanto, exercito muito a minha mente para que cada vez ela seja mais liberta dos pensamentos que não me levam a lugar algum.

Que sonhos ainda te falta concretizar? Tantos…Mas escolho aqui um: encher os coliseus. (sorriso)

 

 

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