© Hugo Delgado
Conhecimento

O meio artístico não gosta de meninas bonitas

Não consigo precisar quando, se há um ano ou mais, mas lembro-me de telefonarem para a galeria, pedirem para falar comigo e perguntarem se eu era filha do “Dr. Pereira Mendes”, aparentemente reputado médico. Disse que não, que era Mendes da parte de família materna e Pereira de família paterna e que éramos transmontanos, lavradores e comerciantes, de origens humildes. A senhora, desapontada por afinal a curadora da galeria não ter proveniência conhecida ou vínculo a famílias da dita sociedade de elite, desmoronou o interesse e desligou. Regra primeira do meio artístico português: muito poucos, dos que singram, dos que merecem o reconhecimento dos pares e ocuparão os grandes palcos da ribalta, especialmente no campo das artes plásticas e visuais e muito em particular em atividades como as de programadores, curadores, diretores de instituições públicas (ou mesmo privadas), vêm de parte nenhuma como eu. A malta tem um ou dois sobrenomes pomposos, usufrui de um casamento estratégico, frequenta a praia em Cascais, no Estoril, tem casa de férias na Comporta ou em Moledo do Minho. Em princípio, a condição familiar de nomeada já permitiu crescer no meio, rodeada de artistas e intelectuais, o que gera aceitação imediata e os coloca na rota dos amigos certos.

Esta foi uma regra que aprendi muito cedo, pois também muito cedo comecei a andar por aí, a fazer coisas. Os meus pais são maravilhosos, inteligentes e intelectuais, dos primeiros licenciados das suas respetivas aldeias e famílias, mas nunca andaram na alta roda da dita elite. Proporcionaram-me uma extraordinária educação, sempre na escola pública, mas com acesso a bens e serviços culturais, viagens, períodos de estudo no estrangeiro, cursos e cursinhos. Não tenho de que me queixar. Foi essa educação, esse convívio vespertino com os livros e com a uma apologia do pensamento (o meu pai, filósofo, diz muitas vezes: “quem pensa pouco, engana-se muitas vezes”), que me permitiu, com apenas 22 anos, começar a trabalhar no meio artístico e nunca me ter sentido estagiária. Aos 23 anos abri a minha própria empresa e aos 24 era convidada para dirigir uma das áreas de programação de Guimarães 2012 – Capital Europeia da Cultura. Se assim foi, aos meus pais o devo, que fizeram de mim gente muito cedo, me ensinaram a Liberdade e a nunca parar de aprender. Mas, para o tal reconhecimento, respeito até, isso não basta. Não basta ser, é preciso parecer, acima de tudo.

Lembro-me de circular pelas galerias do quarteirão de Miguel Bombarda, onde comecei a organizar exposições em 2008, de andar repetidamente por ali e de muitos galeristas, recorrentemente, fazerem de conta que nunca me tinham visto. Neste caso concreto, no meu, as minhas conquistas foram no trabalho com os públicos, com as instituições e com as pessoas. Tive sempre que provar muito primeiro, continuo a ter que o fazer, até me darem o direito de existir no meio. Ter um registo muito operacional, fazer de tudo e ser uma trabalhadora incansável também não ajuda nada. A malta valoriza mais aquele género bitaiteiro de roulotte, que não faz exatamente nada, mas dá imensas ordens, tem 400 assistentes e depois escreve uns textos que ninguém entende, repletos de citações de livros que, provavelmente, nunca leram a sério e que tem um ar distinto e pedante que se vê logo que são os intelectuais lá do sítio. Já fui apelidada de curadora pop, gente que nunca leu um texto meu já ousou dizer que o meu trabalho não tem profundidade, só porque sim. Aprendemos a viver bem, muito bem com tudo isso e a ter cada vez mais orgulho na terra de onde viemos e na gente que nos deu o ser e nos ensinou a tratar bem todos os que connosco colaboram e, no fundo, a ter fé no ser humano muito para lá do dinheiro e poder que cada um tem. 

A outra característica do meio artístico, como da sociedade em geral, é que as mulheres até podem ter uma carreira, mas, no essencial, nunca chegarão ao topo. Como acompanhantes e bibelôs de quermesse é que estão bem. Ora, quando um artista ou outro se depara com uma mulher que ambiciona poder, coordena e ordena, a coisa não funciona. Sempre liderei projetos. Sempre. E sempre houve alguém que apareceu no meu caminho, homem ou mulher, e que perguntou quem era o homem que, no fundo, me supervisionava, sendo vários os casos de criaturas que, não contentes, ultrapassaram todas as barreiras éticas e de educação e foram resolver o assunto com o meu superior, partindo do princípio, primeiro, que eu sou estúpida e, segundo, que seguramente não estou preparada para assumir decisões estruturantes. Acontece muito e felizmente que nos últimos tempos, que em muitos momentos da minha carreira, a vida me reservou líderes que, me trataram e tratam como pares. 

Por fim, dizer-vos que o meio artístico não gosta de meninas bonitas. Não ter pedigree ainda se desculpa quando a pessoa é trabalhadora e, com provas dadas, a coisa vai. Mas, sendo mulher, não se pode ser bonita, elegante e muito menos gostar de moda. Há que ter um look sempre meio alternativo, usar uns modelitos que parece que foram comprados na Índia mas que, na verdade, são do mercado de Tavira, nada de arranjar unhas e usar marcas. É preciso parecer intelectual, ter um ar de quem é desligado das coisas terrenas e parecer sempre um pouco pedinte (mesmo que a conta bancária esteja recheada). Parte-se do princípio que a beleza, nas mulheres, não é compatível com a competência e, muito menos, com a elevação intelectual que a Arte exige. É preciso ser excêntrico, ousado ou, pelo menos, parecer. O meio artístico não gosta de meninas bonitas, não, as suporta e se uma mulher sem pedigree, bonita que dói, atinge aquele estatuto, aquele cargo, tem poder, começa tudo em busca de saber com quem anda a dormir e nem sequer coloca a hipótese de pessoa de tal ser inteligente, estudar e trabalhar mais que os outros e merecer, por desígnio próprio, estar ali.

O dito meio artístico, que devia preconizar a Liberdade, o respeito pela peculiaridade de cada indivíduo, não ter preconceitos e ser permeável pela competência, pela vontade e pela paixão é, na verdade, um antro e um lóbi do pior e é por isso que não cresce, que não se internacionaliza, que não expande, que não ganha escala e que não é uno. Cada um tem as suas famílias, os seus machos e os seus patinhos feios, aparentemente muito talentosos, e o lugar desses está sempre garantido. 

Helena Mendes Pereira
Curadora / Escritora

 

 

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