Sem Treta

Casar em tempos de pandemia (e depois)

O ano de 2020 trouxe com ele várias siglas e denominações que depressa passaram a fazer parte do vocabulário de todos os cidadãos: “coronavírus”, “Covid-19”, “epidemia”, “confinamento”, “quarentena” e “pandemia”. Direta ou indiretamente, não houve quem não fosse afetado por esta nova realidade: o vírus fez poucas ou nenhumas distinções e chegou a todas as pessoas. Muitos daqueles que sonhavam com este ano viram-se na obrigação de alterar, adiar ou cancelar planos. Em outubro, a revista Minha foi perceber como foram vividos os casamentos de 2020 pelos noivos e pelos profissionais cuja subsistência depende deste setor.

Agosto não foi o melhor mês para casar

A BestEvents é uma empresa que organiza feiras nacionais e internacionais dedicadas ao casamento, como a Braga Noivos, que se realiza agora em outubro, entre os dias 23 e 25, no Altice Forum Braga. Em junho passado, a BestEvents e a revista I Love Brides realizaram um estudo sobre aquilo que designaram de “Ano Horribilis dos Casamentos”. De acordo com os dados obtidos, foram “adiados ou cancelados mais de 30 mil casamentos em Portugal por causa da pandemia do novo coronavírus, de um total de 33.372 que estavam marcados para 2020”. Em termos gerais, estamos a falar de 91% de casamentos que não se realizaram na data prevista.

A Basílica do Bom Jesus, o local de culto onde mais se casa em Portugal, sentiu bem esta realidade. Em 2018 e 2019 – anos já atípicos, devido às obras realizadas no Santuário – foram celebrados cerca de 30 matrimónios a cada ano. Em 2017, a mesma Basílica celebrou 140 casamentos, bem como 500 peregrinações, nacionais e estrangeiras, e 80 batizados. Março deste ano trouxe números nunca antes vistos.

“Este ano de 2020, à data de 16 de março, tínhamos 186 matrimónios agendados. Foram todos re-agendados ou remarcados para este ano, ou para 2021, ou mesmo anulados. Para 2021 temos agendados, à data de hoje, 153 matrimónios”, explica o Cónego João Paulo Alves, Reitor da Basílica do Bom Jesus.

Durante os meses de verão, altura em que é comum o Santuário em festa, com noivos e convidados a colorirem os jardins, foram realizados apenas quatro casamentos e 16 batizados. O mês passado contou com mais três bodas matrimoniais e, até ao fim de 2020, estão previstas apenas mais três. Cresce apenas o número de batizados, que se prevê ultrapassar os 40 ainda este ano. De forma a respeitar as orientações da Direção-Geral da Saúde (DGS) e zelar pela segurança de todos os presentes, a Basílica do Bom Jesus levou a cabo uma série de mudanças e adaptações: foi suprimido o corredor central da Basílica e criados corredores laterais, havendo uma porta específica para a entrada e outra para a saída. Há álcool gel disponível para a desinfeção das mãos e a máscara é obrigatória ao entrar na Basílica, assim como durante as celebrações, excetuando para os noivos. Nas celebrações só são permitidos dois fotógrafos que permanecem fixos durante a celebração. O coro só pode ter entre três a cinco elementos que devem estar isolados a cinco metros da assembleia. Só permanecem na Basílica os convidados do matrimónio: a equipa de acolhimento orienta as pessoas para os lugares e informa quem quiser visitar a Basílica que está a decorrer uma cerimónia, devendo os visitantes esperar pelo seu término: não há movimento de fiéis ou turistas durante as cerimónias. Quando estas terminam, a Basílica permanece sem pessoas para desinfecção e arejamento do espaço.

São várias regras e restrições que afetam que afetam quem trabalha nesta indústria, já que grande parte dos noivos tem preferido esperar por tempos mais descontraídos, em que as imposições não sejam tantas. Cândida Pinto, designer e stylist, que afirma ter visto o seu trabalho afetado “a 100%”, é um dos casos de profissionais que viram a vida profissional suspensa pela pandemia de COVID-19.

“Já tinha encomendas até dezembro, inclusive para 2021. Ia fazer vestidos de noiva, vestir pessoas para galas, para uma série de casamentos, batizados e bailes de finalistas e foi tudo cancelado. Para além das encomendas, ficaram por terra também vários negócios, várias oportunidades que surgiram a nível internacional que se estavam a desenhar e que acabaram por não acontecer”, refere a designer.

Cândida, fundadora da Embrace Inc. e proprietária de um atelier sediado em Braga, valeu-se ao longo destes meses das suas outras competências profissionais, fazendo traduções e ministrando formações. É com pesar que diz ter-se visto obrigada a “desligar o botão para não pensar”, já que viu cinco anos “de trabalho árduo irem por água abaixo”. Não deixa, ainda assim, de estar otimista em relação ao futuro, até porque as pessoas já começam a procurá-la e a remarcar eventos.

“Lentamente as pessoas estão a voltar a agendar e também a marcar outros eventos que dantes não marcavam tanto. Há mais sessões fotográficas, alterou-se um bocadinho a natureza dos trabalhos para que as pessoas me requisitam. O que me está a preocupar mais é a nossa capacidade de resposta para 2021. Hoje, por exemplo, tive um dia atarefadíssimo com meio mundo a ligar porque quer assegurar que tem as peças concluídas em fins de 2020, inícios de 2021. Acho que as pessoas estão a marcar para o primeiro semestre de 2021 todas as festas que não aconteceram este ano”, adianta.

Apesar da crise, o otimismo

Das empresas que responderam ao questionário da BestEvents, mais de metade estimou perdas de faturação superiores a 70% em 2020. Sophie Braga, maquilhadora na Sophie Braga Maquilhagem, foi outra profissional que viu o negócio baixar drasticamente com os adiamentos e cancelamentos de matrimónios.

“Este ano tinha pelo menos 20 marcações de maquilhagem, entre casamentos, batizados, comunhões e outras celebrações. Todas as noivas desmarcaram e ainda há muitas pessoas na dúvida quanto ao próximo ano. Ainda assim, estou a contar com o dobro do trabalho e o que me sossega é que mesmo as pessoas ainda só tendo falado por alto comigo, já apontam para vários dias da semana, que é quando as quintas e outros locais estão a agendar os eventos, o que me dá tempo para fazer os serviços todos”, explica.

A conciliação dos diferentes serviços pretendidos é uma das dificuldades que os noivos enfrentam neste momento. Mas, se para o casal pode significar nem sempre poder escolher a data mais convidativa, para os profissionais do setor pode ser sinónimo de trabalho mais diluído no tempo e, portanto, mais passível de ser concretizado.

Carlota Araújo, de 25 anos, e Filipe Monteiro, de 29, ambos residentes em Braga, casaram no dia 24 de julho deste ano, mas não como tinham imaginado e planeado.

© Miguel Cunha Fotografia

“Casamos apenas com cerimónia civil, numa cerimónia íntima, apenas com pais e irmãos, ao ar livre. Vamos fazer a festa para o ano. Foi tudo muito complicado, acho que foi para todas as noivas. Nós em março achávamos que ainda seria possível casarmos em julho tal e qual como tínhamos planeado, estávamos mesmo confiantes que a situação iria melhorar”, adianta Carlota.

O casal não adiou a cerimónia de imediato, mas permanecia em contacto permanente com a quinta onde decorreria a festa. Estavam tranquilos em relação à possibilidade de uma nova data, a quinta tinha bastante disponibilidade. De um momento para o outro, “todos os noivos entraram em pânico”, brinca a noiva. Resultado: de uma semana para a outra, a quinta deixou de ter datas que agradassem ao casal.

“De uma semana para a outra já não tinham nenhum sábado e ficamos sem datas, tínhamos que nos cingir ao que havia disponível por parte da quinta. E a igreja? E o fotógrafo? E o DJ? E articular isto tudo? Foi uma gestão muito complexa. Como demoramos muito tempo a decidir, depois já só tínhamos opções de quintas-feiras ou domingos. Queria mesmo casar num dos meses de verão, já estava a organizar o casamento há um ano, ainda iria ter que esperar mais um e ainda por cima teria de casar numa época diferente?”, questiona.

O casal conseguiu arranjar uma sexta-feira em maio, na qual “graças a Deus” a igreja também estava disponível, assim como todos os outros serviços que tinham requisitado. Depois de alguns malabarismos com a agenda, a cerimónia ficou finalmente marcada para maio do próximo ano, mas as dores de cabeça ainda não tinham terminado.

“Uma coisa que também nos deu muita cabeça foi a lua de mel. Ainda não está tudo reagendado, há coisas que ainda não conseguimos voltar a marcar. A verdade é que nunca pensamos que algum dia teríamos que alterar a nossa lua de mel, por isso quando marcamos não nos preocupamos demasiado com as políticas de cancelamento, tínhamos alguns hotéis não reembolsáveis. Como agora vamos casar em maio e não em julho, temos uma certa margem, porque já não vamos em época alta. E neste momento ainda nem sabemos se vamos poder ir nesta nova data, ainda está tudo muito incerto…”, desabafa.

© Miguel Cunha Fotografia

Carlota Araújo admite, no entanto, que a parte mais difícil foi mesmo a pressão que sentiu na altura de tomar uma decisão: estariam os noivos a “adiar a vida”? Precisamente por esse pensamento imperar, não quiseram deixar de fazer a cerimónia civil. Carlota casou com outro vestido, noutro local que não o escolhido, “mas o mais importante estava lá”. Mais conformada com a situação, agora só deseja no próximo ano conseguir ter todos os convidados a partilharem o dia com os noivos. “Estou muito positiva”, garante.

Joana, de 34 anos, também ia casar em 2020, mas viu-se obrigada a adiar a cerimónia por duas vezes. Neste momento ainda não tem uma nova data definida e prefere esperar por uma maior estabilidade, até porque não quer entrar num ciclo indefinido de adiamentos. Não teve problemas em remarcar serviços quando decidiu adiar a cerimónia.

“A lua de mel foi o constrangimento maior, a única coisa que tínhamos pago na totalidade, ou seja, a nossa maior preocupação. Mas a agência de viagens foi impecável, conseguimos desmarcar tudo e agora temos um voucher para remarcar no próximo ano”, afirma.

Com cerca de 120 convidados, contou com a ajuda das redes sociais e dos “grupos” para não ter de avisar individualmente todas as pessoas. Sentiu sempre apoio por parte de família e amigos – “apesar de haver sempre palpites” –, mas admite que os dias em que era suposto ter casado lhe trouxeram uma certa nostalgia.

“Ficamos bastante tranquilos, mas naquele que seria o dia do casamento claro que bateu a nostalgia: «devíamos estar a casar». Mas era o que tinha que ser, um motivo de força maior que não era relacionado connosco, não havia nada a fazer. Não deixa é de haver dias bastante stressantes, sobretudo aqueles de incerteza: será que temos de adiar, será que vamos conseguir casar?”, pergunta.

Por agora não quer criar mais expectativas, desejando apenas realizar o casamento no primeiro semestre do próximo ano. Mudanças, para já, só na maquilhadora e no vestido, que ficou a meio e que deixou de ter o mesmo encanto aos olhos da noiva. Apesar de tudo, Joana mantém o pensamento positivo.

“Não aconteceu nada de grave, está toda a gente bem e com saúde, é o que importa. Acabamos por nos conformar. Tentamos levar as coisas de ânimo leve. Aos noivos que estão agora a passar por esta situação, só aconselho a que mantenham a calma, não criem grandes expectativas, mas mantenham o pensamento positivo, pensem que o casamento se vai realizar. Acho que o problema são mesmo as expectativas. É deixar as coisas acontecer naturalmente”, conclui.

Braga Noivos: um sinal de esperança

Jorge Ferreira e Jorge Barros Ferreira são os responsáveis pela BestEvents, a entidade que organiza a Braga Noivos, este ano pela 17ª vez. Desde o início da pandemia que se esforçam por transmitir uma mensagem de esperança aos noivos e a todos os profissionais da área. 

“Criamos um grupo no Facebook com profissionais do setor para partilharmos novidades e informações relevantes, de forma a criarmos uma corrente positiva, e também para fazermos pressão junto de entidades governamentais. Fomos a alavanca para que os casamentos se pudessem voltar a realizar. Formamos o grupo em março, mas ainda continuamos a discutir várias temáticas, regras, planos de contingência, tudo para que os vários profissionais consigam trabalhar com segurança e em consonância com as normas da DGS”, explica Jorge Barros Ferreira.

Os estudos que a BestEvents levou a cabo permitiram não só perceber a quantidade de casamentos adiados, mas também a quantidade de empresas que perderam casamentos fruto dos adiamentos, tudo isto baseado em estatísticas reais. Para além disso, foi possível intuir o valor que envolve um casamento porque, apontam os responsáveis, neste setor importam não só os números que resultam da faturação direta, mas também os que orbitam à volta do casamento, numa indústria que movimenta quase quatro vezes mais do que aquilo que gera diretamente com a venda de produtos e serviços. Em relação à capacidade de resposta dos profissionais no próximo ano, Jorge Ferreira é peremtório quando diz que não haverá problemas de maior.

“Vamos ter os casamentos de 2020, mas não os 90%. Não se vão conseguir absorver todos os casamentos que estavam previstos para este ano. Alguns desses e dos de 2021 também vão passar para o ano seguinte. O que isto nos deixa antever é que vamos ter dois anos fortes. Para as empresas de catering acredito que seja um pouco mais complicado ter a capacidade de ter recursos humanos com qualidade. Vai haver muitos casamentos durante a semana e fim de semana, o que vai fazer com que haja uma procura muito grande de profissionais para servirem à mesa, chefes de sala, etc.. Aí sim, o mercado poderá ter dificuldade em dar resposta”, explica.

Jorge Barros Ferreira e Jorge Ferreira © Ana Marques Pinheiro

No entanto, toda esta procura irá, certamente, traduzir-se em novas oportunidades. Novas empresas já começaram a aparecer, dispostas a atuar na época forte dos casamentos de 2021. “A crise acaba com negócios, mas dá oportunidade a outros”, afirmam os responsáveis. O problema para as empresas parece ser mesmo aguentar até ao próximo ano, dado que os apoios a este tipo de profissionais são poucos para fazer frente a esta realidade.

“Deviam adaptar os apoios a situações específicas como a nossa. Há pessoas que estão com faturação zero há meses. E os apoios que existem são manifestamente insuficientes para a realidade, sobretudo quando falamos de empresas grandes. Têm capacidade para aguentar dois, três, quatro meses, mas depois… Podem não ter alternativa senão despedir. Receio que o futuro seja esse”, afirma Jorge Barros Ferreira.

Apesar de todos os problemas, a BestEvents optou, desde o início da pandemia, por uma postura de confiança e otimismo que acaba por se refletir na forma como está a preparar a Braga Noivos que, em bom rigor, continuará a mesma, apesar de as medidas de higiene e segurança – com plano de contingência incluído – denunciarem a pandemia que a todos envolve. Este ano, o evento conta com uma forte componente digital – a Braga Noivos 360o, que permite aos visitantes uma virtual tour –, mas a maior aposta reside na presença física de expositores e visitantes, à semelhança do que sempre aconteceu.

“Realizar a Braga Noivos é enviar um sinal de confiança, de vitalidade do setor, que foi muito atingido mas que tem capacidade de se adaptar às circunstâncias, comunicando que resistiu, que está vivo. Achamos que a realização do evento e a participação das empresas vai ajudá-las a transmitir e a comunicar essa vitalidade. E os noivos também vão perceber que as empresas continuam, que os profissionais são de excelência: adaptaram-se e estão disponíveis para ajudá-los na realização do casamento. Adaptaram-se e muito bem, até porque no próximo ano a realidade vai ser a deste ano: máscara, distanciamento social, desinfeção de mãos…”, explica Jorge Barros Ferreira. 

“Agora, em vez de um casamento, vai ser um casamento e dois batizados (risos). O ano passado tive uma bebé em setembro e entretanto engravidei no início do ano, vou ter um bebé agora em novembro. Vai ser um três em um!”, brinca.

Os dois organizadores nunca equacionaram realizar a Braga Noivos num formato exclusivamente digital, até porque ambos consideram que a componente física deste tipo de feiras é absolutamente indispensável. E a Braga Noivos pode até ser uma ótima oportunidade para os noivos que viram os seus casamentos serem adiados: têm aqui a hipótese de no mesmo local conseguirem articular vários serviços.

“Se há altura em que os profissionais devem estar presentes neste tipo de feira, é esta. Em primeiro para demonstrar ao mercado que estão a sobreviver e a operar bem. Depois, têm de ter em conta a oportunidade de negócio: há empresas que morrem, mas há outras que ficam. Para os noivos também vai ser uma oportunidade porque muitos conseguiram adiar para 2021 as quintas, mas não conseguiram levar todos os serviços atrás deles. Para os que ficaram sem qualquer serviço, é uma oportunidade ótima para ver o evento e tapar esses “buracos”. E há sempre as vantagens que uma feira deste género traz e que permitem que aqui se consiga organizar todo o casamento, desde o primeiro minuto até à lua de mel”, realça Jorge Ferreira.

Cientes de que as coisas não estão fáceis para ninguém, os responsáveis admitem que este ano foram dadas condições diferentes – fruto, também, “das condições proporcionadas pela autarquia para a realização da Braga Noivos” – aos expositores, o que lhes permitiu a presença no certame, mesmo com amplas quebras de faturação. 

Sónia Gomes, de 30 anos, também ia casar este ano, em outubro. Adiou a cerimónia para setembro do próximo ano, “jogando pelo seguro”. A viver na Suíça até há pouco, planeou tudo à distância. Não teve qualquer problema quando decidiu adiar a cerimónia.

“Todas as pessoas foram muito compreensivas, não se opuseram a nada, não tive problema com qualquer um dos serviços. Os meus convidados também foram muito compreensivos, face à situação toda a gente compreendeu o adiamento. Não tinha chegado a marcar a lua de mel, por isso nem com essa parte tive problemas”, adianta.

A noiva admite que 2020 foi um ano complicado em termos pessoais, por isso até vê no adiamento uma oportunidade de planear as coisas com mais calma, “mais focada”. É que o ano não teve só coisas menos boas, também lhe trouxe ótimas notícias que fazem com que agora a festa tenha de ser ainda maior. 

“Agora, em vez de um casamento, vai ser um casamento e dois batizados (risos). O ano passado tive uma bebé em setembro e entretanto engravidei no início do ano, vou ter um bebé agora em novembro. Vai ser um três em um!”, brinca.

 

 

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