Miúda de um Planeta diferente

Através do vento

Parece que cheguei tarde e vi uma flor abrir-se lentamente sobre a minha pele. Parece que o amor deixou de ser a dimensão mais óbvia para a poesia e que já não conversa com a carne do seu verbo. Sinto que já não nascem teias de gestos e palavras cantadas através de uma melodia de lavanda, em que nos meus lábios nasce um mistério e uma onda de segredo constante. No meu coração, outrora adormecido, chegaste para me fazer lembrar que eu existo e que sou melhor do que tudo aquilo que eu alguma vez me julguei ser, que não sou um recorte das minhas cicatrizes em que o tempo não deixa apagar e eu não tenho como esquecer o que já parecia perdido no esquecimento. Tão discreta a minha blusa do avesso que não me permiti mudar, tão descartada a minha intenção de ser perfeita, mas os beijos que te deixei a flutuar na almofada antes de partir continuam por lá. Hoje sinto-me num mergulhar incessante daquilo que achava minimamente correto só para que me visses. A mesma luz invade a minha existência, não preciso de morrer para te ter, preciso de ser, ser com a noite escura, ser num dia claro. Ser. A vida não é nada daquilo que pintaste numa tela em branco quando chegaste, mas a verdade é que tudo parecia mais constante e bonito. Sinto-me abraçada a uma panóplia de emoções, em que parece que tudo aquilo que digo existir em mim não provoca sentido. Porém, experimento um significado permanente. O que é isto que escrevo como se as minhas expressões tivessem voz?! Em mim mora uma tempestade e as gotas da chuva alojam-se no meu estado presente. Não consigo apagar esta vontade de gritar o coração, um pouco mais vazio, mas com o mesmo paladar, o mesmo cheiro, a mesma verdade que cresce e não descampa. Como se uma escuridão se depositasse em mim aquando da minha partida, como se uma nuvem cinzenta sugasse o meu estado do medo de morrer. Tenho a casa vazia, a solidão tão grande, mas deixei que o amor me batesse à porta novamente, sim, tive essa coragem, mas não terás um lugar menor no meu âmago. As rosas acabaram por murchar, e já não tenho a certeza deste jardim que tento regar. Parece que perdi tudo, mas continuo sem saber o que é isto que demora dentro de mim. O que é isto na realidade? Para que continuar na praia se já partiste num barco e eu perdi-te do meu olhar. Afoguei-me nas ondas que deixaste para trás. E. Tanto te quero, como já não te desejo, como já não te procuro, mas depois chega o sol para me fazer lembrar de ti. Do teu nome. Do teu verso. Da tua poesia. Nada será o mesmo. Tampouco o meu coração pinta o meu interior, pois, quando alguém como tu, encontra alguém como eu, não é um verbo que se repete. É como se todas as flores e jardins nos pertencessem, mas vou esquecer que um dia me fizeste olvidar o antes de chegares. Eu sei. Nada faz sentido. Mas todas as janelas da dor foram livres e, por isso, eu cheguei a voar. E, mesmo que o voo tenha sido curto, pois nunca mais encontro um lugar para viver da mesma forma, eu entendo. Vou apenas dizer que esta viagem já não guarda uma canção, a última que o meu amanhã, ainda assim, não vai deixar interromper. Mesmo que eu acredite, mesmo que eu queira isso para mim. Não verei mais murchar o eco da cidade, ou a luz que outrora deixei apagada. Porque tu entraste. E eu deixo que entres, culpa a minha, de todas as vezes, mesmo sem que na realidade chegues tão perto. Em mim.

Juliana Gomes, escritora
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