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Sugestão de Leitura

Corpos Celestes, de Jokha Alharthi

Uma das características mais fascinantes dos livros é, para mim, a facilidade com que transportam o leitor para geografias e culturas que lhe são desconhecidas. O Sultanato de Omã é um pequeno país localizado na foz do Golfo Pérsico que, apesar das reservas modestas de petróleo, tem-se destacado como um importante destino turístico e exportador de peixe. O país ocupa o 74.º lugar no índice dos mais pacíficos do mundo e, não obstante o seu regime político – monarquia absoluta –, enfrentou, nas últimas décadas, um enorme processo de modernização. Ora, um dos mais recentes lançamentos da Relógio d’Agua, Corpos Celestes foca-se, precisamente, nas mudanças sociais ocorridas em Omã no último século, adotando, para o efeito, distintas vozes, no seu próprio contexto temporal.

O mote da narrativa é dado por três irmãs que vivem, humildemente, com os seus pais numa pequena vila do Sultanato de Omã al-Awafi. São elas Maya, que casa com um noivo arranjado pelos pais, depois de um desgosto amoroso; Asma, que casa em obediência a um sentido de dever e Khawla, que rejeita todas as propostas de casamento enquanto espera pelo seu primo prometido que, anos antes, emigrou para o Canadá. Elegantemente construído, Corpos Celestes é a estória da história e do povo de um Omã modelo contada a partir das perdas e paixões de uma família.

“Vencedor do Man Booker Prize 2019, Corpos Celestes é um romance ambicioso e intenso. Alharthi atira-nos, sem dó nem piedade, para o seio de uma família marcada por suicídio, adultério, amores não correspondidos e, ainda, homicídio. O livro navega sobre as águas complexas do fluxo de consciência, sendo notável a forma como a Autora domina uma narrativa crescentemente complexa.”

Sim, se gostou de Cem Anos de Solidão de Gabriel Garcia Márquez, vai adorar Corpos Celestes. À semelhança do grande clássico moderno colombiano, a obra de Jokha Alharthi também conta a história de um país, pelos olhos de várias gerações da mesma família. O primeiro capítulo fala-nos de Maya, que se resigna a um casamento orquestrado pelos pais com um jovem que ela não ama. O início da vida de casada de Maya acaba por contrastar com o da sua filha, contado, no capítulo seguinte, pela voz do tal marido que Maya nunca quis. London, ao contrário da mãe, pode decidir com quem casar e, face a uma situação de violência, conseguiu, inclusive, o divórcio. Abdallah, o seu pai, fala do amor não correspondido pela mulher e dos eventos que marcaram a sua infância, altura em que a escravatura era ainda uma realidade em Omã, apenas abolida em 1970. Hoje, como começa por nos dizer, encontra-se a viajar para Frankfurt, em negócios. Presente contrastante com o seu passado – não muito antigo – onde quem tomava as rédeas na família era o seu pai. A atividade era exercida dentro de fronteiras com austeridade. Entre o progresso e o fundamentalismo religioso, o país onde vive, parece vacilar, não esquecendo as memórias de um tempo de pobreza em que tudo era tratado com rezas e remédios caseiros.

A narração vai-se dividindo entre Abdallah – na primeira pessoa – e um narrador omnisciente que aborda os pontos de vista das outras personagens: London; filha de Maya e Abdallah; Salima e Azzan, pais de Maya; Asma e Khawla, suas irmãs; Sulayman, pai de Abdallah e Zarifa, escrava e amante de Sulayman que, face à morte da mãe de Abdallah, veio a criá-lo. Cada ponto de vista encontra-se estribado num momento temporal próprio. Abdallah fala-nos, claramente, no presente, mas as restantes personagens estão em décadas diferentes que vão do início do século até à contemporaneidade. Por essa razão, o livro pode parecer inicialmente confuso, mas a escrita de Jokha é tão fluída e cativante que, depressa, nos sentimos em casa quando pensamos em al-Awafi.

Vencedor do Man Booker Prize 2019, Corpos Celestes é um romance ambicioso e intenso. Alharthi atira-nos, sem dó nem piedade, para o seio de uma família marcada por suicídio, adultério, amores não correspondidos e, ainda, homicídio. O livro navega sobre as águas complexas do fluxo de consciência, sendo notável a forma como a Autora domina uma narrativa crescentemente complexa. Por essa razão, este é um riquíssimo pedaço de literatura que oferece um olhar profundamente tocante e humano, sobre uma cultura tão diferente que recebe, nos dias de hoje, nada menos do que incompreensão, no melhor cenário. Este é uma daqueles raros livros sobre seres humanos, independentemente de raça, religião, educação ou estrato social. Tem tudo que ver com compaixão e empatia.

Um livro poético e incrivelmente rico que agradará, certamente, a todos os que gostam de olhar para além das diferenças culturais.

 

Daniela Guimarães
Blogger de Literatura
@portasetenta   /  www.portasetenta.pt 

 

 

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