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«A FORMAÇÃO SERÁ A NOSSA BASE DE SUCESSO»

Carlos Matos assumiu recentemente a presidência do ABC/UMinho, sucedendo no cargo a Rui Silva. Aos 45 anos, o antigo internacional português e formado no emblema bracarense pretende “abrir” o clube à cidade, assumindo em entrevista à Revista Minha o desejo de colocar novamente o histórico do andebol nacional na senda dos êxitos.

Aos 45 anos, a sua ligação ao ABC é longa. Para além de ter sido formado no clube, alinhou nos seniores várias temporadas. Nos últimos anos integrou a estrutura, com destaque para os mais recentes, onde foi vice-presidente da direção. É agora o novo presidente. Foi a paixão que sente pelo clube que o fez avançar? Sem dúvida! O pavilhão Flávio Sá Leite e o ABC fazem parte da minha vida. Entrei aqui em 1986, comecei nos infantis, fiz toda a formação até chegar aos seniores. Depois estive fora 5 anos e regressei até hoje. São cerca de 30 anos de ligação. Tive a sorte de ter sido campeão nacional em todos os escalões e fui capitão de equipa em todos os escalões.

Nesta casa, fiz amigos para a vida e recebi ao longo do tempo ensinamentos fundamentais para o meu desenvolvimento enquanto atleta e homem. Os títulos conquistados foram muito importantes, mas os princípios que me foram transmitidos no clube, como a resiliência, a persistência, a honestidade ou trabalho são a base mais importante.

Este foi, sem dúvida, o maior troféu que conquistei nesta casa. O amor ao ABC é muito grande. É um sentimento que não se explica. Está-me no sangue! Quando deixei de jogar, tentei afastar-me do andebol.

Foi muito difícil, porque era a coisa que mais gostava de fazer na vida. Passados alguns meses, já sentia muitas saudades e não consegui ficar longe destes palcos. É um vicio saudável! Entretanto, regressei ao ABC como responsável da Comunicação e mais tarde, em 2017, percebendo o momento delicado que o clube estava a atravessar, juntamente com outros amigos e, igualmente, fervorosos adeptos do ABC, decidimos avançar para uma nova administração, com o Rui Silva como presidente e eu a vice presidente. O ABC passava por dificuldades económicas muito graves e foram quatro anos muito duros. Com muitas alterações e várias adaptações à realidade, conseguimos controlar a situação. Com a cessão de funções da antiga adminis- tração, não vislumbrando nenhuma candidatura que considero válida, enquanto academista, decidi avançar, com o único propósito de ajudar o clube, como sempre fiz desde 1985.

«Os títulos conquistados foram muito importantes, mas os princípios que me foram transmitidos no clube foram, sem dúvida, os maiores troféus que conquistei nesta casa»

É um sonho tornado realidade ou nunca lhe passou pela cabeça ser presidente do clube? Não era um sonho. Quando deixei de jogar em 2011, referi, na altura, que estaria sempre disponível para ajudar o ABC, seja na bancada ou noutro tipo de funções. Foi uma consequência, mas é uma honra gigante presidir a um clube tão histórico e emblemático.

Como é trabalhar em prol do ABC? É um orgulho mas também é muito duro! É preciso muito amor à camisola. É necessária muita disponibilidade, porque nenhum dos elementos que faz parte da administração é profissional de andebol. Todos têm os seus empregos e temos que sacrificar muitas vezes a vida pessoal e familiar. Por outro lado, temos o retorno quando vemos o clube mais estável e organizado. A verdade é que estamos cá por amor ao clube!

Consigo na liderança da nova administração, quais vão ser as prioridades ou traves-mestras do próximo triénio? Em primeiro lugar, dar continuidade à regularização financeira que começou há quatro anos. O clube tinha um passivo considerável, foi sendo reduzido e queremos que chegue ao nível zero. Enquanto isso, não podemos descurar também a vertente desportiva apesar de reconhecer que o ABC não vai lutar para ser campeão nacional nos próximos 2/3 anos. Não podemos mentir e iludir os academistas. Até porque os principais clubes de futebol estão a investir cada vez mais nas suas secções de andebol, com quantias inalcançáveis para o ABC. Apesar de tudo, durante este mandato, temos o sonho de conquistar um troféu com as equipas seniores masculina e feminina. Outro dos objetivos desta direção passa por tentar resolver um problema que existe já há 20 anos, que diz respeito à remodelação do pavilhão Flávio Sá Leite.

As coletividades desportivas sofreram muito com os tempos complicados de pandemia. Para um clube como o ABC, como foi viver nesta situação e que implicações tem tido no presente e poderá ter no futuro? Foram gravíssimas e estamos ainda a tentar fazer uma avaliação real deste impacto. O ABC tinha iniciado em 2017 um projeto com os agrupamentos de escolas de Braga, no qual disponibilizávamos, duas vezes por semana, dois técnicos para dar treinos de andebol nas escolas. Este método permitia alargar uma base de recrutamento. Em 2020, quando a pandemia parou o país, tínhamos, entre o clube e atletas que treinavam com o ABC, cerca de 400 jovens só em termos de formação. De repente, quando os treinos retomaram ainda o ano passado, já só estavam connosco perto de 70 atletas. Houve uma redução drástica. As escolas pararam com estas atividades, tivemos que interromper este processo, o que levou ao afastamento de muitos atletas. Esta situação terá efeitos nefastos que se irão manifestar daqui a 5 ou 6 anos. Se a base de recrutamento diminuir, a qualidade dos atletas será igualmente inferior. A pandemia causou também um impacto financeiro muito grave nos clubes e o ABC não foi exceção! Houve de facto uma diminuição drástica de receitas.

«Portugal não tem cultura desportiva e o andebol não tem tempo de antena na comunicação social»

O dinheiro não abunda, mas nota-se o cuidado de valorizar a formação por meios alternativos, com protocolos e parcerias com diversas entidades e empresas. Já têm tido o retorno pretendido dessas iniciativas? O ABC foi campeão pela primeira vez em 1986/87 e desde aí sempre foi um clube formador. Recordo que fomos à Final da Liga dos Campeões em 1994 e 70 por cento da equipa vinha da formação. É reconhecidamente a melhor escola de formação do país. Ainda recentemente, nos Jogos Olímpicos, estavam lá quatro atletas que passaram pela nossa escola. É, portanto, um desígnio que se mantém. O de formar excelentes jogadores e pessoas de grande valor. E este é o único caminho para o sucesso. Ao contrário de dois ou três clubes nacionais, o ABC não tem capacidade para recrutar 10 ou 12 estrangeiros por época. Temos que “fabricar” bons valores, é isso que temos feito e será a nossa base de sucesso.

«A situação financeira do ABC está perfeitamente estável»

Porque é que as empresas não estão muito disponíveis para o andebol, em particular? Isto acontece porque o nosso país tem cultura do futebol e não tem cultura desportiva! E as empresas são o reflexo da sociedade em que vivemos. Os nossos atletas Olímpicos ganham medalhas e têm destaque durante alguns dias nas capas dos jornais. Depois desaparecem em detrimento de um jogador de futebol que marca um grande golo num treino. Infelizmente, esta é a realidade em Portugal. O andebol não tem tempo de antena e o problema, a meu ver, está nas opções políticas. Não existe uma aposta real nesta cultura desportiva desde o berço, ou seja, nas escolas. Existem países, com elevado sucesso desportivo em várias modalidades, onde miúdos com 6/8 anos têm entre 6 a 10 horas de desporto por semana. Eu acredito que este paradigma pode ser alterado, será um processo longo, mas só poderá acontecer com políticas educativas que premeiam o desporto. Temos algumas empresas que têm sido inexcedíveis com o ABC, que têm cultura desportiva e que percebem as dificuldades de um clube como o nosso para segurar um jovem que faz cá a sua formação, mas que é aliciado por emblemas com um grande poderio financeiro. E, acima de tudo, estes parceiros percebem também o excelente trabalho que é feito no clube, não só, desportivamente, mas também em termos humanos e académicos. Há cada vez mais atletas em ambiente académico, uma prática incentivada pelo ABC. É algo que nos identifica, diferencia e orgulha! 

Concorda com a fusão do ABC com o SC Braga, proposta que foi lançada pelo anterior presidente, Rui Silva, há poucos meses? Não concordo! Tenho muito respeito pelo SC Braga, é uma entidade desportiva brilhante, tem feito muito pela cidade, mas esta possibilidade iria acabar com um dos clubes. E os adeptos não ficariam felizes! Acho perfeitamente possível, até benéfico para ambos, existir uma parceria, em determinados moldes. Estou disponível para discutir essa possibilidade com o presidente do SC Braga, António Salvador, mas uma fusão, que levasse ao término do clube, está fora de questão!

A antiga direção tinha um projeto ambicioso para o pavilhão e zona envolvente. Há novidades relativamente a este dossier? Está, neste momento, parado. Estava num processo avançado de negociação, mas eram necessários investimentos privados e, atualmente, também devido à pandemia, essas empresas ainda estão receosas para investir…

… mas há algum compromisso por parte da Câmara Municipal de Braga? Temos a garantia que, da parte do Município, irão ser feitas, brevemente, pequenas obras de remodelação que vão dar alguma dignidade ao pavilhão, aos balneários e às zonas de acesso, que estão, efetivamente, muito deterioradas. Mas há um compromisso com o atual executivo, presidido por Ricardo Rio, caso vença as eleições, (a entrevista foi efetuada antes das eleições) que, no próximo mandato, será efetuada uma remodelação profunda. É mais que urgente… Aliás, já o era há 15 anos!

Quanto gasta o ABC numa época desportiva, sabendo que tem os plantéis seniores, equipa feminina e diversos escalões de formação? Nesta época, gastará um valor a rondar os 350 mil euros. Gravitam em redor do clube cerca de 250 pessoas. Nem todas recebem dinheiro, mas todas custam dinheiro ao ABC.

E, por isso, esta é uma importância muito reduzida para os gastos que o clube tem, desde subsídios, pagamento de inscrições, taxas, arbitragens, transportes, alimentação para os miúdos, entre outros. É um orçamento muito baixo e temos que fazer autênticos milagres.

Como se gere uma situação como esta? De onde vem o dinheiro? É muito difícil! Vamos contando com apoios do município, através do contrato-programa e que tem sido um parceiro fundamental. E temos ainda as ajudas de algumas empresas, publicidades, cativos, mensalidades da formação e alguns mecenas que nos apoiam em situações pontuais. Infelizmente, não há direitos de transmissão nas TV’s no andebol. E, mais uma vez, fica provado que só o futebol é beneficiado com estas questões.

Qual é a situação financeira do clube, neste momento? Existe uma dívida que é reconhecida pela Direção, à qual continuaremos a dar prioridade. Contudo, todos os acordos com credores têm sido integralmente cumpridos e a situação financeira do clube está, neste momento, controlada e estável. Não há desvios orçamentais e, enquanto eu for presidente, nunca entraremos em loucuras. Não existe apreensão em termos orçamentais. Existem, de facto, preocupações diárias em termos de tesouraria, um problema completamente diferente. Mas lutaremos com as armas que temos!

«Queremos “abrir” o clube à cidade e chamar os bracarenses novamente ao pavilhão»

Os bracarenses em tempos idos manifestavam sempre muito apoio ao ABC e gostavam da modalidade. As coisas mudaram nos últimos anos. Porquê? Essa realidade mudou por vários fatores. Primeiro, porque os adeptos habituaram-se a que o ABC ganhasse sempre e quando deixou de vencer permanentemente, houve algum afastamento de vários adeptos. Depois, deixou de haver futebol no Estádio 1º de Maio, contribuindo também para este decréscimo de adeptos. Muita gente vinha ver os jogos do SC Braga e aproveitava para assistir também aos nossos, que eram agendados estrategicamente para o mesmo dia. A verdade é que o pavilhão enchia e tínhamos sempre muito apoio. Por fim, também existiram erros por parte do ABC e um deles foi “fechar-nos” muito na nossa casa, no pavilhão Flávio Sá Leite. É algo que esta direção quer mudar…

Como clube histórico da cidade e do país, como espera capitalizar, neste seu mandato, esse respeito e carinho que existe pelo clube? Queremos “abrir” o clube à cidade e chamar os bracarenses novamente ao pavilhão. É preciso ir às escolas, às empresas, ir à cidade e promover ações dinâmicas. Tenho a certeza que 95 por cento dos bracarenses gostam do ABC, mas este carinho tem de ser materializado em vindas ao pavilhão. Precisamos muito do apoio das pessoas. Principalmente agora que não temos ganho tantas vezes. As equipas seniores, tanto a masculina como a feminina, são compostas maioritariamente por jovens da nossa formação
que precisam de sentir o apoio dos adeptos, de ver o Sá Leite a “ferver” como eu e muitos outros ex-atletas
já viram. E só com um forte apoio vindo das bancadas poderemos contrariar os fortes investimentos dos “clubes de futebol” e vencer títulos mais vezes.

Quando é que o ABC poderá efetivamente lutar novamente por títulos todos os anos? Depende de vários fatores. Quando a dívida financeira estiver no zero, quando conseguirmos captar mais receitas, e quando terminar esta loucura dos 3 “clubes de futebol”, com investimentos exorbitantes. Se estes elementos coincidirem, haverá maior equilíbrio e o ABC irá aproveitar para lutar pelos troféus. Há, no entanto, uma máxima dentro do clube: nunca nos resignamos! Vamos lutar sempre para ganhar, seja contra quem for. Este espírito de superação que sempre fez parte da nossa história é para manter e, se possível, reforçar.

Neste momento, é rentável para o clube participar nas competições europeias? Não. É penoso e drástico, financeiramente.

Quer isto dizer, que se o clube, alcançar uma classificação que lhe possibilite participar na Europa, irá abdicar deste estatuto? Não iremos abdicar, porque acredito que conseguiremos angariar apoios financeiros suficientes para fazer face a todas as despesas inerentes a essa participação. Caso contrário, seria desastroso!

O que se poderá publicitar como sendo um fator diferenciador do ABC perante os demais clubes, para o jogador que pretenda uma formação de qualidade? Basta olhar para a história. Se fizermos uma análise dos últimos 15 anos, saíram do ABC, certamente, cerca de 15 atletas internacionais A e muitos fizeram carreiras brilhantes a nível nacional e internacional. Conseguimos potenciar talento com muita exigência, paixão e acompanhamento e nenhum clube em Portugal apresenta este registo, à exceção do ABC. Não é nenhuma fórmula mágica. É um trabalho de grande mérito efetuado ao longo do tempo, repleto de princípios, e que nos diferencia dos demais.

Considera que a formação do clube é devidamente valorizada? Internamente, a formação do clube é valorizada, assim como externamente, porque tenho contactado com alguns clubes internacionais, que reconhecem o ABC e o seu trabalho na formação. Existe contudo um problema gigante no andebol português: os clubes não são compensados pela saída de um atleta da formação. Se o ABC amanhã quiser ir buscar 40 jogadores da formação de um clube e eles quiserem vir, esse mesmo clube não recebe um tostão. Esta realidade é o verdadeiro suicídio do andebol. Tenho debatido esta questão em diversos fóruns e no seio da Federação, porque isto, enquanto persistir, vai acabar com muitos clubes formadores. Neste sentido, posso afirmar que o ABC e outros clubes formadores não são valorizados pela Federação de Andebol de Portugal. É um fenómeno extremamente perigoso para o desenvolvimento do andebol.

A parceria existente com a Universidade do Minho é fundamental para a sustentabilidade da formação do clube? Sem dúvida. A Universidade do Minho é um parceiro essencial para o ABC. É uma parceria Win/Win, onde todos vencem. Esta sinergia promove a competição, a formação desportiva e os resultados académicos. Tem funcionado muito bem e queremos que continue a crescer.

A aposta no andebol feminino é para manter e reforçar? Sim, sempre no registo de captação de atletas jovens com potencial desportivo e, similarmente, académico. É um projeto que também contribui muito para o desenvolvimento da marca ABC.

Onde é que imagina o ABC daqui a 10 anos? Se o ABC continuar no caminho do rigor, conseguir manter os seus princípios de exigência, superação e capacidade de trabalho, se conseguirmos reter durante mais tempo os nossos talentos, se existir maior apoio da cidade, das empresas e dos adeptos e com o pavilhão efetivamente remodelado, digno para os atletas e para os academistas, acredito que continuaremos no leque de equipas que vencerá mais vezes.

Quantos sócios tem o ABC neste momento? Cerca de 350 sócios pagantes. É um valor irrisório, tendo em conta que metade desses sócios são pais de atletas da nossa formação. Não conseguimos perceber porque não temos mais sócios. Já fizemos várias ações de captação de novos sócios e este fenómeno mantém-se há muitos anos. Até porque para ser sócio do ABC custa ape- nas cinco euros por mês e dá acesso a todos os jogos em casa. Não se paga absolutamente mais nada! Dá 1,25 euros por jogo! É estranho e dá que pensar…O nosso objetivo é que o número de sócios cresça porque precisamos da ajuda deles e seremos mais fortes com esse apoio.

«O ABC terá que voltar a ser acarinhado como já o foi anteriormente. A presença dos nossos adeptos faz-nos falta»

Para finalizar, que mensagem gostaria de deixar aos sócios e simpatizantes do ABC? Quem trabalha aqui diariamente são pessoas que dedicam 100 por cento da sua capacidade ao ABC. São pessoas sérias, empenhadas e muito trabalhadoras, mas precisam do apoio de todos.

O ABC terá que voltar a ser acarinhado como já o foi anteriormente. A presença dos nossos adeptos faz-nos falta, mesmo que não estejamos a lutar pelos títulos. Uma certeza podem ter: nós iremos sempre competir para ganhar. E com o apoio de todos, estaremos mais próximos!

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