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«Na gastronomia, a tradição e a inovação são compatíveis e essenciais»

ENTREVISTA A RAFAEL OLIVEIRA

A gastronomia minhota é muito rica, diversificada e, principalmente, é o reflexo daquilo que temos para oferecer em termos de produtos agrícolas

 

Para falar de Gastronomia nada melhor do que estarmos junto à lareira, com os potes de ferro ao lume… hábito bem característico do Minho. Para a conversa, convidamos Rafael Oliveira, fundador da FEEL, agência que se tem especializado nas áreas do Turismo, Património, Gastronomia, Vinhos e Sustentabilidade. É também vice-presidente da Associação Empresarial de Braga, membro da Confraria dos Gastrónomos do Minho e integra vários projetos tendo em vista a valorização, preservação e promoção da gastronomia minhota. A entrevista decorreu na antiga cozinha monástica, de inícios do século 17, inserida no Mosteiro de Tibães, que, gentilmente, nos cedeu o espaço, com a devida autorização da Direção Regional de Cultura do Norte (DRCN). Uma conversa franca, sem filtros, onde fica demonstrada a grande paixão de Rafael Oliveira pela gastronomia e pelo território minhoto.

Rafael, parte da história da gastronomia minhota é muito isto… lareira acesa e potes ao lume…

Sim, não só do Minho, mas é, efetivamente, nesta região que há uma maior concentração destes ambientes. Aliás, os mosteiros foram os grandes responsáveis pelo início da gastronomia que ainda hoje temos e a quantidade de mosteiros no nosso território faz com que tenhamos uma gastronomia riquíssima. Muito daquilo que temos hoje descende do trabalho desenvolvido nestes locais, desde pratos típicos a doces conventuais. Particularmente, tenho uma relação especial com o Mosteiro de Tibães, porque foi aqui que comecei a interessar-me profissionalmente pela gastronomia, numa ação organizada há vários anos pela Anabela Ramos que ainda hoje cá trabalha e na qual marcou presença o chef José Vinagre.

A gastronomia minhota assenta muito na essência dos produtos que temos. Consideras que a simplicidade pode ser luxuosa, captando novos públicos?

A gastronomia minhota é muito rica, diversificada e, principalmente, é o reflexo daquilo que temos para oferecer em termos de produtos agrícolas. Porque a gastronomia é isso mesmo. São os produtos disponíveis e a capacidade de os confecionar e trabalhar para o prato final. Contudo, nos últimos anos, temos vindo a pecar no respeito pela sazonalidade e pelo produto local. Por muito que gostemos de alguns pratos tradicionais, não podemos tê-los durante o ano inteiro. E se olharmos de um modo geral, os restaurantes têm a mesma ementa o ano completo. Todo o nosso receituário atual é baseado em meia dúzia de pratos regionais. Mas existem cerca de 500 receitas que fazem parte do Receituário Minhoto. Mas, para termos uma gastronomia rica e luxuosa, é necessário respeitarmos a sazonalidade. Quando o fizermos, conseguiremos alcançar esse estatuto, porque temos produtos de grande qualidade todo o ano. Mas é preciso utilizá-los nas épocas certas, porque o novo cliente é muito mais exigente na disponibilidade do produto local.

Concordas, portanto, que a tradição e a inovação na cozinha são compatíveis?

São compatíveis e essenciais. A gastronomia que temos atualmente tem cerca de 150 anos. E ao longo deste tempo foi-se atualizando, porque foram surgindo novos produtos. A gastronomia não pode ser estática ou inflexível. As próprias alterações climáticas são responsáveis pelo desaparecimento de determinados produtos e pela existência de novas produções. Na gastronomia, a origem é muito importante e devemos respeitá-la, assim como à sazonalidade.

A pandemia veio também contribuir para que muitos restaurantes fechassem portas. Houve outros que foram forçados a reinventar-se. E muitos vivem com dificuldades. Quais são os maiores desafios que se colocam no futuro das profissões associadas à Gastronomia?

Um dos primeiros passos a dar pelas instituições, tanto a nível regional como nacional, é perceber aquilo que é fundamental fazer para que mantenham a qualidade de trabalho. Existem dois tipos de funções na gastronomia: o chef de cozinha ou o cozinheiro e o serviço de mesa e, neste último ponto, há um trabalho muito grande e que é necessário começar a dar passos sólidos. Nós temos a reputação de sermos um país hospitaleiro, que sabe receber e onde se come bem. Ou seja, tão ou mais importante que a refeição, é ser bem tratado. A função do chef de sala tem sido esquecida e é muito importante para promovermos uma experiência gastronómica na sua plenitude. E, atualmente, precisamos de voltar a conquistar os jovens para que esta profissão volte a ter o mesmo carisma. Temos que promover a valorização de algumas profissões associadas à gastronomia, nomeadamente, o serviço de mesa. Porque só assim é que conseguimos cativar os jovens para esta área. Temos várias escolas na região, formamos centenas de jovens por ano e a percentagem que vai para o mercado de trabalho nacional é muito baixa. E muitos emigram em busca de melhores condições. Até os próprios preços que pagamos por uma refeição em Portugal são muito acessíveis. Temos, efetivamente, que repensar esta realidade e para esta discussão temos que trazer os empresários e as associações que os representam para se falar disto de forma aberta e sem tabus para encontrar uma saída profícua. Os últimos três anos têm sido difíceis, com um impacto financeiro brutal nos empresários. E obviamente, no futuro próximo, ainda vamos ter mais algumas consequências da pandemia, nomeadamente, mais encerramentos. Mas, depois disto, vamos sair mais fortes nesta área e na proteção da gastronomia, porque este período serviu, igualmente, para as pessoas estudarem e repensarem a melhor forma de estar no mercado e de se apresentarem ao cliente final.

Em termos da identidade e da projeção que a gastronomia minhota demonstra no exterior, que perceção achas que têm, tanto os profissionais internacionais como quem nos visita de outros países, da nossa cozinha regional?

Quem nos visita, gosta imenso da nossa gastronomia, mas as pessoas, hoje em dia, não vão a um restaurante para saciar a fome. Quando vamos a um restaurante, queremos ter uma experiência gastronómica e queremos ser surpreendidos. E esta prova é muito importante. É essencial para quem está a servir que saiba contar uma história à volta do prato, para que o cliente perceba de onde vem o produto, que estamos a respeitar a sua sazonalidade, se é de produção sustentável e de proximidade. E a quantidade também deve ser considerada na nossa cozinha tradicional. O cliente é cada vez mais exigente na questão da sustentabilidade. Acho que ainda vai demasiada comida para a mesa. Se há uns anos, isto era uma mais-valia, hoje em dia, já não é bem assim. O cliente atual, se sobrar muita comida, questiona para onde vai o excedente. Há também agora esta preocupação ambiental que devemos ter em conta. São fatores importantes para cativar o cliente e fazê-lo regressar. E, neste ponto, há ainda um trabalho muito grande a fazer pelas associações ligadas ao setor de forma a sensibilizar os empresários para esta realidade da gestão de desperdícios.

Efetivamente, os restaurantes devem ter cada vez mais preocupações e responsabilidades quando o assunto é sustentabilidade. Sentes que há este espírito na restauração minhota?

Os novos cozinheiros com formação ou os chef’s de cozinha têm esta preocupação. O António Loureiro que tem estrela Michelin que é um apaixonado pela utilização do produto local e muda a ementa em determinadas épocas do ano. Tem um grande respeito pela sazonalidade e pela proximidade, apostando em alguns parceiros/produtores locais. Há outros bons exemplos, como o Renato Cunha ou o chef José Vinagre que têm uma preocupação mais transversal. Relativamente à gastronomia mais tradicional, o empresário ainda não está tão sensibilizado para este tema. Há ainda um trabalho importante a fazer, porque quando existir essa consciência será benéfica para o meio ambiente, mas também para os empresários, pois terão mais lucro.

Há uma relação muito forte entre a cultura e aquilo que comemos. É também isto que diferencia a gastronomia minhota?

Sem dúvida. Temos caraterísticas ímpares na região, com territórios de minifúndio, que proporcionam uma ampla diversidade de produtos e, acima de tudo, com maior qualidade. Temos zonas de socalcos onde a retenção de águas é superior e vão alimentando esses campos de cultivo, contribuindo para a variedade qualitativa do produto que se reflete depois na nossa gastronomia.

Temos que promover a valorização de algumas profissões associadas à gastronomia, nomeadamente, o serviço de mesa. Porque só assim é que conseguimos cativar os jovens para esta área.

Integras alguns projetos tendo em vista a valorização de produtos e pratos locais dos municípios.

A gastronomia tem sido efetivamente uma das grandes apostas de todos os concelhos minhotos. Há inclusive em quase todos eles festivais de gastronomia…

Nos últimos anos, os municípios foram-se ajustando às novas exigências. Nos anos 90, realizavam-se feiras gastronómicas todos os anos, principalmente no verão, mas foram desaparecendo. Hoje em dia, há uma clara aposta em eventos cada vez mais estruturados, pensados no território, com o cuidado de perceber aquilo que tem para oferecer, e envolvendo também os empresários de restauração. E os municípios, de uma forma geral, têm feito um trabalho muito interessante na preservação e promoção do produto local.

Assistimos também à revitalização de espaços como os mercados municipais de Braga e Famalicão. Qual a importância que têm na promoção e valorização dos produtos locais?

Têm uma importância enorme na promoção e valorização, mas também na relação que temos com os produtos locais e com os próprios produtores. Estas últimas gerações divorciaram-se completamente dos mercados municipais, uma prática comum dos nossos pais. E as grandes superfícies comerciais contribuíram para esta realidade, com o seu crescimento, em paralelo com o empobrecimento e degradação dos mercados locais. Alguns mercados têm vindo a ser requalificados, como em Braga e Famalicão, outros reposicionados como o de Guimarães, há uns anos atrás, permitindo criar novas áreas e incentivando o regresso dos pequenos produtores, estimulando-os também a cultivar e a recuperar determinadas áreas de cultivo que estavam abandonadas há alguns anos. Além disso, apresentam uma imagem muito mais atrativa, com condições únicas para o consumidor, inclusive com áreas de restauração e lazer. Há, contudo, um trabalho a fazer no que diz respeito aos horários, para que haja maior compatibilidade entre o produtor e o consumidor.

O empresário ligado à gastronomia tradicional ainda não está tão sensibilizado para a sustentabilidade. Há ainda um trabalho importante a fazer tendo em vista o respeito pela sazonalidade e pela proximidade.

És membro da direção da Confraria dos Gastrónomos do Minho. Que papel tem tido ao longo dos anos na promoção da gastronomia da região?

As confrarias, de forma geral, têm um papel muito importante na promoção, valorização, proteção e divulgação do produto que defendem. Mas não podem deixar de se atualizar. A disponibilidade dos membros não é igual à do passado e este é o maior problema que as confrarias, atualmente, enfrentam. É fundamental olharmos para o futuro e percebermos aquilo que está bem e mal. No caso da Confraria dos Gastrónomos do Minho, devemos sempre defender a gastronomia local, regional ou tradicional. Mas a gastronomia tradicional não pode fechar-se num prato que é igual há 100 anos. Terá que haver alterações. Hoje, há uma oferta da nova gastronomia que é importante integrar e enquadrar nas confrarias. Temos que valorizar a discussão e as novas tendências.

As confrarias, de forma geral, têm um papel muito importante na promoção, valorização, proteção e divulgação do produto que defendem. Mas não podem deixar de se atualizar.

Como já referiste, há cada vez mais oferta internacional, novas tendências, gostos que se dividem e estilos de vida que se alteram. De que forma é que essas mudanças têm influenciado a gastronomia regional minhota?

Temos que perceber que é uma tendência e que este fenómeno acontece, normalmente, quando há um crescimento turístico nas grandes cidades. Falando de Braga, a oferta que existia há 10 anos é completamente diferente da que presenciamos hoje em dia. Por exemplo, antes havia uma ou duas pizzarias no centro da cidade e agora há mais de dez. E, atenção, não tenho nada contra as pizzas… Se o empresário acha que este é o caminho e que é a aposta segura para o seu negócio, porque há muita procura, temos que aceitar. Considero que a diversidade da oferta é importante até para os jovens que pretendem seguir a área voltarem a ter mais vontade de apostar na gastronomia tradicional. Neste ponto, há duas opções: pegar em receitas tradicionais e repensá-las, e, por outro lado, pensar naquilo que pode ser feito para que os nossos pratos típicos se tornem, realmente, apetecíveis em termos de rentabilidade de negócio. A certificação do Bacalhau à Braga ou de outro prato típico da região é importante para que as pessoas sigam algumas regras e apresentem um produto de qualidade ao cliente. E isso faz toda a diferença no preço final que deve ser ajustado, tabelado e unânime. Desta forma, o cliente não é enganado e desfruta de um produto de grande qualidade em qualquer restaurante.

Na região têm também surgido cada vez mais novas propostas na área da restauração para vegetarianos ou veganos. Inclusive há até espaços que apostam em pratos típicos adaptados a estes regimes alimentares. Como é que os restaurantes ligados à tradição se adaptam a estas tendências?

Para termos oferta de comida vegan ou vegetariana não precisamos de restaurantes meramente direcionados para esses regimes alimentares. Mas em cada espaço, devem existir propostas para todo o tipo de cliente. E não estou a falar de apresentarem exclusivamente uma simples salada. Comida vegan ou vegetariana é muito mais do que isso. Precisam procurar produtos de qualidade que possam substituir a carne ou o peixe e todos os seus derivados. Há estudos que apontam que a percentagem de pessoas vegan ou vegetarianas, em termos mundiais, não ultrapassará os 10 por cento. Mas, é um número que tem grande impacto nos restaurantes. Porque, num grupo de 10 pessoas, se uma for vegan ou vegetariana as opções vão recair num restaurante que tenha este tipo de opções na ementa. Até do ponto de vista financeiro, é positivo para os restaurantes que isto aconteça. Em Paredes de Couro, todos os restaurantes disponibilizam pelo menos um prato vegetariano diário nas suas listas. É um excelente exemplo e todos os territórios devem ter esta preocupação e apostar neste equilíbrio. Temos que olhar seriamente para a sustentabilidade ambiental e para o desperdício alimentar.

És curador na área da Gastronomia da Carta Europeia de Turismo Sustentável para o Alto Minho. Que importância é que tem no desenvolvimento da gastronomia deste território?

A região do Alto Minho é considerada um Destino Sustentável, uma vez que tem implementadas as diretrizes da Carta Europeia de Turismo Sustentável. E uma das áreas que se está a trabalhar diz respeito à Gastronomia. Aquilo que falamos anteriormente sobre a oferta vegan ou vegetariana é algo que nos preocupa e que faz parte deste projeto, nomeadamente, na criação de alguns produtos que possam, por um lado, oferecer este tipo de oferta ao cliente final, e, por outro, ajudar a dinâmica da gastronomia local. O estudo efetivo da gastronomia da região é um ponto que me parece importante. Devemos entender mais e melhor da nossa gastronomia. Apesar da excelente relação que temos com a nossa gastronomia, só agora é que temos um referencial gastronómico. É preciso conhecer a origem. Toda a região Minho tem uma oferta vasta que precisa de ser estudada e aprofundada para percebermos como é possível modificar ou alterar a gastronomia tradicional, sem perder a sua essência, mas adaptando-a às novas tendências, exigências e também à realidade das alterações climáticas.

És candidato à direção da Associação Empresarial de Braga?

Existem algumas pessoas que me têm desafiado para uma candidatura, mas é um cargo que merece toda a nossa disponibilidade. E, neste momento, tenho algumas dúvidas se consigo assumir essa responsabilidade plenamente. Se sentir que há um projeto com o qual me identifico e com maior disponibilidade de tempo, terá o meu apoio, desde que obedeça a alguns critérios que considero serem essenciais para o desenvolvimento da AEB.

Que pratos mais te marcaram ao longo dos anos?

Gosto muito de arroz de sarrabulho, bacalhau, cozido à portuguesa e, principalmente, arroz de tomate, que pode ser acompanhado por sardinhas, pataniscas ou bolinhos de bacalhau. Um bom arroz de tomate é uma das receitas mais maravilhosas da nossa gastronomia.

Para terminar, em três palavras, como defines a gastronomia minhota?

Inspiradora, genuína e um ato de Amor!

Temos que olhar seriamente para a sustentabilidade ambiental e para o desperdício alimentar.

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