Conhecimento

O incrível sonho da invenção da cura (parte II)

E, retomando, todos aqueles que tentam cumprir o teletrabalho com crianças em casa a quem também têm que dar apoio nas tarefas da tal Escola que acontece à distância? Muitos aplausos para todos esses. Muitos e de pé! É tão fácil apontar apenas o dedo. Tudo isto é tão propício a mostrar, como disse, o pior de nós enquanto sociedade. Fala-se da importância de o país produzir mais e importar menos. Estou de acordo. Estamos todos. “Compre o que é nosso”, diz o slogan. Estou de acordo. Vamos lá. Mas que este patriotismo não seja xenófobo, racista e misógino pois, recordo, foram os portugueses (e os espanhóis) que começaram no século XV com este sonho de globalização, a navegar por mares nunca dantes navegados, a enfrentar o desconhecido e a inundar o reino com riquezas das índias e de outras partes. E bem. 

Há quem diga que isto é tudo muito bom, que a natureza agradece, que havia turismo a mais e muito consumo e muito egoísmo e que isto agora é que vai tudo ficar reordenado, em conformidade com o universo. A sério? A sério, pessoas? Eu adoro viajar. Adoro. Adoro ver o meu país a tornar-se multicultural, com gente de todas as partes. É isto que nos torna mundo. Se o turismo traz consequências como a gentrificação, a especulação imobiliária, a insustentabilidade ambiental? Traz. Tem que ser regulado, não extinto. É tão fácil este discurso da reorganização do universo, mas tão irresponsável, tão lascivo! Há gente a morrer todos os dias, gente a perder empregos, famílias destroçadas, mulheres e crianças confinadas em casa com agressores e há um racismo e um fundamentalismo a crescer todos os dias, a tornar-se pandémico, esse sim. Há valas comuns para enterrar pessoas cujos corpos não são reclamados… Era mesmo isto que queríamos?! Uma pandemia, um mal global para devolver o equilíbrio entre o Homem e a natureza? A sério?! Custa-me a crer que alguém, no seu perfeito juízo, pense realmente que isto foi a melhor coisa que nos aconteceu, que este desafio coletivo global era tudo o que precisávamos. Custa-me. 

Mas, e fazendo ligação ao título do texto, este isolamento social era e é, sim, uma grande oportunidade para nos curarmos por dentro, para aprendermos a estar connosco mesmos, para reaprendermos a magia de ler um livro, a importância de valorizarmos a nossa casa e de a cuidarmos, de percebermos quem são as pessoas essenciais na nossa vida e aquelas de quem vamos querer manter o isolamento social, de compreendermos a importância de sermos saudáveis (comendo bem, praticando exercício físico, mantendo o equilíbrio mental) e de termos um sistema imunitário mais forte porque isso, sim, é uma bênção e uma solução para muitos problemas individuais e coletivos. 

Porque é fácil, para os juízes do Facebook, estar a ditar sentenças no conforto do lar, com um salário garantido, com dados ilimitados e acesso a horas de séries, sem ter que fazer contas à conta da luz e por isso poder ligar o forno todos os dias para fazer mais um bolinho. É fácil.

Era esta uma oportunidade para percebermos que católicos, islâmicos e judeus, hindus, ateus ou agnósticos, somos todos iguais e suscetíveis de um vírus como este. Esta era uma oportunidade para percebermos que não é a nossa cor de pele que nos torna mais ou menos resistentes ao vírus, mas que as nossas condições de vida contribuem, decisivamente, para o conseguirmos conter e combater. Esta era uma oportunidade para percebermos que é urgente erradicar a pobreza, tornar a educação como possível e obrigatória nos quatro cantos do mundo, eliminar as desigualdades entre mulheres e homens, acabar com as guerras e insistir na solidariedade entre Estados para que haja o mínimo indispensável para todos. 

Porque é fácil, para os juízes do Facebook, estar a ditar sentenças no conforto do lar, com um salário garantido, com dados ilimitados e acesso a horas de séries, sem ter que fazer contas à conta da luz e por isso poder ligar o forno todos os dias para fazer mais um bolinho. É fácil. Mas devia ser difícil porque nos devia obrigar a olhar para dentro, primeiro, e depois olhar à nossa volta, olhar para o mundo global ao qual agora é fácil atribuir culpas mas que todos construímos com consumo e alegria, e pensar que é urgente menos crítica e mais ação. Esta era uma oportunidade para aprendermos a ser solidários e cooperantes dentro das nossas famílias e não nos limitarmos a abandonar os idosos que nos deram vida. 

O COVID-19 é uma guerra, global. Não é nenhum milagre dos céus. É um flagelo e uma tragédia. E para todos aqueles que o acham o incrível sonho da invenção da cura da humanidade, gostaria apenas de dizer que espero que cumpram a sua parte e sejam uns exemplos de luz, mas não nos iludam com os vossos prognósticos ditados a partir do conforto de um sofá porque há países em guerra, campos de concentração de refugiados onde não é possível existir distanciamento social, milhões de pessoas sem acesso a água potável, gente que vai morrer, só, completamente só e cujo corpo ninguém reclamará, milhares de pessoas que não podem fazer o luto dos seus, desemprego a subir em flecha em todo o mundo. 

Por fim, há um medo a instalar-se em todo o lado. O medo e a intolerância crescem, propagam-se muito mais que o vírus, todos os dias, e por isso é fácil ao Estados decretarem Estados de Emergência uns atrás dos outros. Fácil. Neste momento, as democracias estão em risco, a Liberdade é pura ilusão e todas as nossas conquistas pós-modernas foram por água abaixo. Vou continuar a ter insónias, sonhos e pesadelos a intervalar noites inteiras sem conseguir dormir porque a mim não me convencem com este incrível milagre (ou sonho) da invenção da cura. Não. Isto é uma guerra e só veio acicatar o pior de nós enquanto sociedade local e global. E uma guerra enfrenta-se com coragem e com luta, diária, sem tréguas, não com críticas telecomunicadas. 

E sim, espero que em breve sejam levantadas as restrições e que possamos retomar as nossas vidas, com sentido de responsabilidade e com todos os cuidados e mais alguns. Mas que as possamos retomar porque confinados não mudamos o mundo. Confinados apenas travamos esta pandemia e o mundo tem muitas outras que precisam, urgentemente, que ponhamos mãos à obra. 

(Leia aqui a primeira parte deste artigo.)

 

Helena Mendes Pereira
Curadora / Escritora

 

 

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